14.2.12

Era uma vez um elfo


Era uma vez um elfo (que é uma fada macho) que estava apaixonado por uma
princesa que não existia. Nunca, nunca um elfo se deve apaixonar por menos que uma princesa, mas, coitadas, há tantos elfos que nem todas elas podem existir.
Ora estar apaixonado por uma princesa que não existe, ou mesmo por qualquer
senhora do mesmo país, é uma coisa muito incómoda. As pessoas que não existem não têm conversa, nem convívio, nem mesmo coisa nenhuma. Não são bons pais nem boas mães, porque não são pais nem mães, o que enfim sempre é uma desculpa, mas, como todas as desculpas, não adianta nada.
Ora este elfo queria alcançar a princesa que não existia, por quem estava
apaixonado. E pôs-se a ler livros de fadas, e a ver como é que se conseguia obter o amor e o casamento de uma princesa. Mas, infelizmente, os livros de fadas não falam de elfos que se apaixonassem, nem de princesas exactamente como aquela, porque as outras estavam todas a existir em qualquer parte, mesmo que fosse só na última página do conto.
Por isso o elfo não aprendeu nada dos livros de fadas, e a mesma coisa sucede a
muita gente em muitos livros, apesar de muito anunciados, como costumam ser
os livros de fadas e outros livros para meninos e meninas.
Então o elfo pôs-se a pensar. Para isso sentou-se num degrau de uma porta,
encostou os cotovelos nos joelhos alçados e meteu na boca o polegar da mão
direita, que era a que estava por cima das duas mãos que estavam cruzadas.
Começou a roer a unha do polegar, mas isto não deve ser feito por meninos ou
meninas, mas só por elfos e ninguém pode ser elfo assim ao acaso ou porque quer.
Pensou, pensou, pensou, e não chegou a nada, que é o que costuma acontecer a
todos os homens do mundo quando pensam; só os homens não dão por isso e o
elfo conseguiu dar.
Como viu que ler não serve de nada (para os elfos), e que pensar não serve para
nada também (para os elfos), decidiu fazer um embrulho da sua roupa, e com
ele e com um cajado seguir caminho para parte nenhuma para ver se encontrava
qualquer coisa que não sabia o que era, para ver se lhe dizia como havia de
matar o dragão, que só agora se lembrava que existia mas preferia não encontrar, e fugir aos ladrões, e encontrar num palácio a princesa que não existia, e casar com ela e receber grandes presentes dos reis seus sogros, que, por sinal, se tinha esquecido de fazer até não existir.
Foi andando, foi andando, e por fim chegou a uma caverna (quem anda muito
chega sempre a uma caverna), e viu à porta um velho muito velho de barbas
brancas muito brancas e via-se na cara dele que parecia de quem quer dormir que estava a pensar muito muitos pensamentos.

2
O elfo chegou ao pé do velho e puxou-lhe um braço, o que é uma grande má
criação. Depois, como o velho não desse acordo de si, nem desacordo, deu-lhe um pontapé naquela parte do cu que estava saída para fora da pedra em que estava sentado. Isto é também uma grande má criação e nem mesmo com mendigos se deve fazer. O velho, coitado, acordou de pensar e disse «Irra!» É o que qualquer pessoa diria, pouco mais ou menos.
Depois o velho acordou completamente e perguntou, «O que é que quer?», o que é natural, porque uma pessoa que nos acorda deve querer dizer-nos qualquer coisa, pois se quisesse bater-nos era mais fácil bater-nos estando nós a dormir. É claro que o pontapé que o elfo pregou no velho foi só para lhe chamar a atenção e foi numa parte mole.

Texto inacabado de Fernando Pessoa
in,
NOGUEIRA, Manuela, O melhor do mundo são as crianças: antologia de poemas e textos de
Fernando Pessoa para a infância
Lisboa, Assírio & Alvim, 1998.

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