29.12.09

Hans Christian Andersen



                                                          O Fato Novo do Sultão

Era uma vez um sultão, que dispendia em vestuário todo o seu rendimento.
Quando passava revista ao exército, quando ia aos passeios ou ao teatro, não tinha outro fim senão mostrar os seus fatos novos. Mudava de traje a todos os instantes, e como se diz de um rei: Está no conselho; dizia-se dele: Está-se a vestir. A capital do seu reino era uma cidade muito alegre, graças à quantidade de estrangeiros que por ali passavam; mas chegaram lá um dia dois larápios, que, dando-se por tecelões, disseram que sabiam fabricar o estofo mais rico que havia no mundo. Não só eram extraordinariamente belos os desenhos e as cores, mas além disso os vestuários feitos com esse estofo, possuíam uma qualidade maravilhosa: tornavam-se invisíveis para os idiotas e para todos aqueles que não exercessem bem o seu emprego.
—São vestuários impagáveis, disse consigo o sultão; graças a eles, saberei distinguir os inteligentes dos tolos, e reconhecer a capacidade dos ministros. Preciso desse estofo!
E mandou em seguida adiantar aos dois charlatães uma quantia avultada, para que pudessem começar os trabalhos imediatamente.
Os homens levantaram com efeito dois teares, e fingiram que trabalhavam, apesar de não haver absolutamente nada nas lançadeiras. Requisitavam seda e oiro fino a todo o instante; mas guardavam tudo isso muito bem guardado, trabalhando até à meia-noite com os teares vazios.
— Preciso saber se a obra vai adiantada.
Mas tremia de medo ao lembrar-se que o estofo não podia ser visto pelos idiotas. E, apesar de ter confiança na sua inteligência, achou prudente em todo o caso mandar alguém adiante.
Todos os habitantes da cidade conheciam a propriedade maravilhosa do estofo, e ardiam em desejos de verificar se seria exacto.
— Vou mandar aos tecelões o meu velho ministro, pensou o sultão; tem um grande talento, e por
isso ninguém pode melhor do que ele avaliar o estofo.
O honrado ministro entrou na sala em que os dois impostores trabalhavam com os teares vazios.
—Meu Deus! disse ele consigo arregalando os olhos, não vejo absolutamente nada! Mas no entanto calou-se. Os dois tecelões convidaram-no a aproximar-se, pedindo-lhe a sua opinião sobre os desenhos e as cores. Mostraram-lhe tudo, e o velho ministro olhava, olhava, mas não via nada, pela razão simplicíssima de nada lá existir.
—Meu Deus! pensou ele, serei realmente estúpido? É necessário que ninguém o saiba!... Ora esta! pois serei tolo realmente! Mas lá confessar que não vejo nada, isso é que eu não confesso.
«Então que lhe parece?» perguntou um dos tecelões:
— «Encantador, admirável! respondeu o ministro, pondo os óculos. Este desenho... estas cores... magnífico!... Direi ao sultão que fiquei completamente satisfeito.»
— «Muito agradecido, muito agradecido», disseram os tecelões; e mostraram-lhe cores e desenhos imaginários, fazendo-lhe deles uma descrição minuciosa. O ministro ouviu atentamente, para ir depois repetir tudo ao sultão.
Os impostores requisitavam cada vez mais seda, mais prata e mais oiro; precisavam-se quantidades enormes para este tecido. Metiam tudo no bolso, é claro; o tear continuava vazio, e apesar disso trabalhavam sempre.
Passado algum tempo, mandou o sultão um novo funcionário, homem honrado, a examinar o estofo, e ver quando estaria pronto. Aconteceu a este enviado o que tinha acontecido ao ministro: olhava, olhava e não via nada.
— «Não acha um tecido admirável?» perguntaram os tratantes, mostrando o magnífico desenho e as belas cores, que tinham apenas o inconveniente de não existir.
—Mas que diabo! eu não sou tolo! dizia o homem consigo. Pois não serei eu capaz de desempenhar o meu lugar? É esquisito! mas deixá-lo, não o deixo eu.
Em seguida elogiou o estofo, significando-lhes toda a sua admiração pelo desenho e o bem combinado das cores.
—É duma magnificência incomparável, disse ele ao sultão. E toda a cidade começou a falar desse tecido extraordinário.
Enfim o próprio sultão quis vê-lo enquanto estava no tear. Com um grande acompanhamento de pessoas distintas, entre as quais se contavam os dois honrados funcionários, dirigiu-se para as oficinas, em que os dois velhacos teciam continuamente, mas sem fios de seda, nem de oiro, nem de espécie alguma.
—Não acha magnifico? disseram os dois honrados funcionários. O desenho e as cores são dignos de vossa alteza.
E apontaram para o tear vazio, como se as outras pessoas que ali estavam pudessem ver alguma coisa.
—Que é isto! disse consigo mesmo o sultão, não vejo nada! É horrível! serei eu tolo, incapaz de governar os meus estados? Que desgraça que me acontece! Depois de repente exclamou: «É magnífico! Testemunho-vos a minha satisfação.»
E meneou a cabeça com um ar satisfeito, e olhou para o tear, sem se atrever a declarar a verdade. Todas as pessoas de seu séquito olharam do mesmo modo, uns atrás dos outros, mas sem ver coisa alguma, e no entanto repetiam como o sultão:«É magnífico!» Até lhe aconselharam a que se apresentasse com o fato novo no dia da grande procissão. «É magnífico! é encantador! é admirável!» exclamavam todas as bocas, e a satisfação era geral. Os dois impostores foram condecorados e receberam o título de fidalgos tecelões.
Na véspera do dia da procissão passaram a noite em claro, trabalhando à luz de dezasseis velas. Finalmente fingiram tirar o estofo do tear, cortaram-no com umas grandes tesouras, cozeram-no com uma agulha sem fio, e declararam, depois disto, que estava o vestuário concluído.
O sultão com os seus ajudantes de campo foi examiná-lo, e os impostores levantando um braço, como para sustentar alguma coisa, disseram:
«Eis as calças, eis a casaca, eis o manto. Leve como uma teia de aranha; é a principal virtude deste tecido.»
— Decerto, respondiam os ajudantes de campo, sem ver coisa alguma.
— Se vossa alteza se dignasse despir-se, disseram os larápios, provar-lhe-íamos o fato diante do espelho.
O sultão despiu-se, e os tratantes fingiram apresentar-lhe as calças, depois a casaca, depois o manto. O sultão tudo era voltar-se defronte do espelho.
— Como lhe fica bem! que talhe elegante! exclamaram todos os cortesãos. Que desenho! que cores! que vestuário incomparável!
Nisto entrou o grão-mestre de cerimónias.
— Está à porta o docel sob que vossa alteza deve assistir á procissão, disse ele.
— Bom! estou pronto, respondeu o sultão. Parece-me que não vou mal.
E voltou-se ainda uma vez diante do espelho, para ver bem o efeito do seu esplendor. Os camaristas que deviam levar a cauda do manto, não querendo confessar que não viam absolutamente nada, fingiam arregaçá-la.
E, enquanto o sultão caminhava altivo sob um docel deslumbrante, toda a gente na rua e às janelas exclamava: «Que vestuário magnifico! Que cauda tão graciosa! Que talhe elegante!» Ninguém queria dar a perceber, que não via nada, porque isso equivalia a confessar que se era tolo. Nunca os fatos do sultão tinham sido tão admirados.
— Mas parece que vai em cuecas, observou um pequerrucho, ao colo do pai.
— E a voz da inocência, disse o pai.
- Há ali uma criança que diz que o sultão vai em cuecas.
«Vai em cuecas! vai em cuecas!» exclamou o povo finalmente.
O sultão ficou muito aflito, porque lhe pareceu que realmente era verdade. Entretanto tomou a enérgica resolução de ir até ao fim, e os camaristas submissos continuaram a levar com respeito a cauda imaginária.                              

                                                             O Anjo e a Flor do Campo

(Conto dinamarquês de Andersen)

- Sempre que sucede morrer uma criança boa, desce um anjo do céu a buscá-la, e, depois de a recolher em seu regaço, desdobra as asas brancas, dadas pelo Criador, afim de ir percorrendo em seguida todos os sítios com que na terra a criança mais simpatizou. As flores que nesta digressão apanham, levam-nas ambos ao Pai Celeste, para ele as fazer lá reflorir no empíreo mais formosas e odoríferas, imarcescíveis mesmo. Deus então aconchega ao peito essas flores, - e na que mais lhe apraz deposita um beijo. Esse beijo tem o condão miraculoso de inocular na flor animação e voz.
Destarte a flor transfigurada passa a tomar parte também nos harmoniosos coros dos bem-aventurados. Assim falava um anjo de Deus na ocasião de transportar para a mansão celestial uma criança morta. E a criança escutava o anjo, absorta, embevecida, como se a envolvessem cintilantes brumas de um sonho fagueiro. E o anjo, conchegando ao regaço a criancinha, voava naquele momento por sobre os sítios, de que cila mais tinha gostado em vida, - jardins esmaltados de flores lindíssimas.
- Quais destas queres, perguntava o anjo, que daqui levemos para lá plantarmos no céu?
Aconteceu passarem por junto de uma roseira magnífica. Mãos daninhas, porém, de qualquer mal-intencionado, haviam barbaramente praticado o acto brutal de quebrar-lhe o tronco, por forma que os desditosos ramos, carregadinhos de rubros botões prestes quase a desabrocharem, pendiam tristemente imurchecidos, enquanto de todo não secassem.
- Que dó que me faz o pobrezinho do arbusto! exclamou a criança. Ah! que se pudéssemos levá-lo connosco para ir lá no céu reverdecer e reflorir!...
Fez-lhe o anjo a vontade e apanhou a roseira. Depois continuaram a colher flores de variadas castas, até reunirem um volumoso braçado.
- Parece-me que bastam agora já essas que levamos, observou a criança.
O anjo fez um aceno de condescendência, mas sem remontar ainda o voo para o firmamento. Começava a pronunciar-se cada vez mais a escuridão da noite incipiente. Reinava em torno um silêncio profundíssimo. Nisto aconteceu passarem quase rentes com uma ruazita estreita e sombria, em cujo pavimento jaziam dispersos, abandonados, desprezados por entre o lixo do solo, fragmentos de loiça quebrada, vidros partidos, chinelos velhos, farrapos e trapalhadas, que denunciavam esse conjunto de peripécias sempre mais ou menos inerentes a qualquer mudança de domicílio. Algum morador, que dali se ausentara, - ao transportar para a nova residência seus pobres tarecos, havia certamente arremessado à rua a inútil frandulagem de que já não precisava.
Por entre estes destroços mostrou o anjo à criança os cacos de um vazito de flores. Junto aos cacos viam-se os torrões esboroados da terra que em tempo enchera o vaso. A um desses torrões prendiam-se ainda as raízes de uma singela planta campestre, com a sua florinha de mimosas cores imurchecida já e quase esfolhada, suja de pó, amachucada e pisada pelos pés dos transeuntes. E, ao mostrar-lha, disse o anjo à criança:
- Levaremos também esta, coitada!, no caminho te irei contando os motivos.
Depois começou a erguer, a erguer o voo para o céu. Foi então que o anjo deu princípio à narrativa seguinte :
- Ali, naquela rua sombria que tu viste, morava numa espécie de toca uma criancinha enfermiça. Era um pequenito que nascera infezado e raquítico. Sua moléstia congénita impunha-lhe a necessidade tristíssima de permanecer quase sempre na cama. Se alguma vez acontecia sentir melhoras, o mais que lograva era percorrer o quarto em roda, amparado nas muletas. Quando chegava o estio, entravam-lhe pela janela uns raios de sol a iluminarem-lhe o acanhado âmbito do seu miserável domicílio. A criança aproveitava então a visita fugitiva daquelas ondulações luminosas e nelas se aquecia, e nelas buscava revivificar-se, como se fora aquilo a benéfica influência de um higiénico passeio pelo campo. Este pequenito nunca em sua vida tinha pois podido apreciar a magnífica verdura das florestas, e delas só podia formar uma longínqua ideia por algum ramo de faia que o filho do vizinho lhe trazia de tempos a tempos, como lembrança. Pegava então no ramo, e dependurava-o por sobre a cabeceira, fazendo assim de conta que estava repousando à sombra de virente arvoredo, com as ondulações doiradas de um sol em perspectiva e um delicioso chilreio de mil passaritos a encher-lhe de música os ouvidos. Numa bela manhã de primavera trouxeram-lhe umas flores do campo; casualmente uma destas vinha ainda com a raiz intacta. Tira-se de cuidados o pequeno, e trata de plantar cautelosamente o vegetalzito num vazinho de barro, que daí por diante ficou constituindo o seu constante enlevo, poisado no parapeito da janela, à ilharga do leito em que jazia. Plantado por mãos carinhosas, regado, tratado, acariciado, o vegetal campestre soube na sua humildade agradecer os afagos de tanta solicitude; em breve lhe pulularam viçosos rebentos; e todos os anos se desatava em novas flores, como a festejar o seu desvelado cultor. Para o pobre doentinho era aquilo o seu estimado jardim, o seu único tesouro neste mundo; queria-lhe com todo o afecto da sua alma; prodigalizava-lhe os seus mais encarecidos mimos; da água, que bebia, dava-lhe sempre as primícias; colocava-o de modo que nunca perdesse um raio sequer do sol que escassamente lhe entrava pela janela. E a humilde planta vegetava e desenvolvia-se; revestia-se cada vez mais de folhedo; toucava-se de botões que desabrochavam em flores; irradiava-lhe perfumes; parecia até sorrir-lhe com requintes de galanteio. Por sua parte o pequenito, - quando afinal Deus o chamou à sua eterna presença, - o pequenito, antes de soltar o derradeiro suspiro, inclinou-se comovido para a sua verde companheira e segredou-lhe de mansinho, muito de mansinho, as suas ternas, últimas despedidas. Faz agora um ano, que o pobre enfermo faleceu; e durante este ano todo lá ficou desprezada, esquecida a um canto, no mesmo parapeito da esguia fresta, a planta campesina em que outrora havia docemente concentrado seus cuidados e alegrias o infantil doentinho. Faltando-lhe os mimos, a que se acostumara, pouco a pouco murchou e se foi o triste vegetal mirrando, até que o próprio vaso agora lhe deitaram à rua, como inútil pejamento, por ocasião de sair dali quem habitava naquela mi­ serável toca. Foi esta a flor, que ora acabámos de cuidadosamente recolher de entre o lixo da rua; e, se em nosso ramalhete a arrecadei com tanto carinho, é porque, - onde a vês, amachucada, espezinhada, — causou já mais alegrias e mais enlevos, do que se fora uma flor raríssima no jardim de uma rainha!
- E como é que tu sabes os pormenores todos dessa história? perguntou a criança ao anjo.
- Como é que os sei? é porque se passaram comigo estas particularidades; o pequenito das muletas sou eu; não querias que reconhecesse a minha estimadíssima flor?
A criança olhou então deslumbrada para o rosto esplendoroso do anjo. Chegavam naquele momento às luminosas portas da privilegiada mansão, em que ninguém respira senão júbilo inefável e felicidade eterna.
Quando o Pai do Céu estreitou em seus braços o corpinho da criancita morta, sentiu esta, como por encanto, despontarem-lhe milagrosamente nas costas duas azas brancas, muito brancas, de plu magem fina, acetinada, exactamente iguais às do anjo que o transportara.
E ambos de mãos dados, agora perfeitamente idênticos na sua essência imutável, ambos gracio samente unidos em fraternal amplexo, foram então voando risonhos pela estrelada amplidão do empí reo.
Em seguida recolheu Deus no regaço as flores que os recém-chegados lhe haviam trazido; todas amimou e agasalhou por igual; - mas na pobre planta que o anjo apanhara de entre o lixo, nessa, como se quis esse distingui-la com o privativo selo da sua espe­cial predilecção, depositaram seus divinos lábios um beijo.
É logo a florinha dos campos, que abandonada e desprezada jazera na lama da rua, de pronto renasceu transfigurada; brotou-lhe instantaneamente voz; incorporada no grupo infinito das criaturas angélicas que flutuam em torno do Omnipotente, ficou simultaneamente com estas entoando os solenes cânticos da felicidade celeste.

Tradução Portuguesa de Xavier da Cunha
(Retirado do site da  Biblioteca Nacional)
 
Todos os contos do autor por ordem cronológica, aqui.

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