Era uma família grande, todos amigos. Viviam como todos nós: moscas presas na enorme teia de aranha que é a vida da cidade. Todos os dias a aranha lhes arrancava um pedaço. Ficaram cansados. Resolveram mudar de vida: um sonho louco: navegar! Um barco, o mar, o céu, as estrelas, os horizontes sem fim: liberdade. Venderam o que tinham, compraram um barco capaz de atravessar mares e sobreviver a tempestades.
Mas para navegar não basta sonhar. É preciso saber. São muitos os saberes necessários para se navegar. Puseram-se então a estudar cada um aquilo que teria de fazer no barco: manutenção do casco, instrumentos de navegação, astronomia, meteorologia, as velas, as cordas, as polias e roldanas, os mastros, o leme, os parafusos, o motor, o radar, o rádio, as ligações eléctricas, os mares, os mapas…
Disse certo poeta: Navegar é preciso. A ciência da navegação é um saber preciso, exige aparelhos, números e medições. Os barcos fazem-se com precisão, a astronomia aprende-se com o rigor da geometria, as velas fazem-se com saberes exactos sobre tecidos, cordas e ventos, os instrumentos de navegação não informam mais ou menos. Assim, eles tornaram-se cientistas, especialistas, cada um na sua – juntos para navegar.
Chegou então o momento da grande decisão – para onde navegar. Um sugeria as geleiras do sul do Chile, outro os canais dos fiordes da Noruega, um outro queria conhecer os exóticos mares e praias das ilhas do Pacífico, e houve mesmo quem quisesse navegar nas rotas de Colombo. E foi então que compreenderam que, quando o assunto era a escolha do destino, as ciências que conheciam de nada serviam.
De nada valiam os números, as tabelas, os gráficos, as estatísticas. Os computadores, coitados, chamados a dar o seu palpite, ficaram em silêncio. Os computadores não têm preferências – falta-lhes essa subtil capacidade de gostar, que é a essência da vida humana. Inquiridos sobre o porto de sua escolha, disseram que não entendiam a pergunta, que não lhes importava para onde se estava a ir.
Se os barcos se fazem com ciência, a navegação faz-se com os sonhos. Infelizmente a ciência, utilíssima, especialista em saber como as coisas funcionam, tudo ignora sobre o coração humano. É preciso sonhar para se decidir sobre o destino da navegação. Mas o coração humano, lugar dos sonhos, ao contrário da ciência, é coisa imprecisa. Disse certo poeta: Viver não é preciso. Primeiro vem o impreciso desejo. Primeiro vem o impreciso desejo de navegar. Só depois vem a precisa ciência de navegar.
Naus e navegação têm sido uma das mais poderosas imagens na mente dos poetas. Ezra Pound inicia os seus Cânticos dizendo: E pois com a nau no mar/assestamos a quilha contra as vagas… Cecília Meireles: Foi, desde sempre, o mar! A solidez da terra, monótona/parece-nos fraca ilusão! Queremos a ilusão do grande mar/ multiplicada em suas malhas de perigo. E Nietzsche: Amareis a terra de vossos filhos, terra não descoberta, no mar mais distante. Que as vossas velas não se cansem de procurar esta terra! O nosso leme nos conduz para a terra dos nossos filhos…Viver é navegar no mar alto!
Não só os poetas. C. Wright Mills, um sociólogo sábio, comparou a nossa civilização a uma galera que navega pelos mares. Nos porões estão os remadores. Remam com precisão cada vez maior. A cada novo dia recebem remos novos, mais perfeitos. O ritmo das remadas acelera. Sabem tudo sobre a ciência do remar. A galera navega cada vez mais rápido. Mas, inquiridos sobre o porto do destino, respondem os remadores: O porto não nos importa. O que importa é a velocidade com que navegamos
C. Wright Mills usou esta metáfora para descrever a nossa civilização por meio duma imagem plástica: multiplicam-se os meios técnicos e científicos ao nosso dispor, que fazem com que as mudanças sejam cada vez mais rápidas; mas não temos ideia alguma de para onde navegamos. Para onde? Somente um navegador louco ou perdido navegaria sem ter ideia do para onde. Em relação à vida da sociedade, ela contém a busca de uma utopia. Utopia, na linguagem comum, é usada como sonho impossível de ser realizado. Mas não é isso. Utopia é um ponto inatingível que indica uma direcção.
Mário Quintana explicou a utopia com um verso: Se as coisas são inatingíveis… ora!/Não é motivo para não querê-las…Que tristes os caminhos, se não fora/A mágica presença das estrelas! Karl Mannheim, outro sociólogo sábio que poucos lêem, já na década de 1920 diagnosticava a doença da nossa civilização: Não temos consciência de direcções, não escolhemos direcções. Faltam-nos estrelas que nos indiquem o destino.
Hoje, dizia ele, as únicas perguntas que são feitas, determinadas pelo pragmatismo da tecnologia (o importante é produzir o objecto) e pelo objectivismo da ciência (o importante é saber como funciona), são: Como posso fazer tal coisa? Como posso resolver este problema concreto particular? E conclui: E em todas essas perguntas sentimos o eco optimista: não preciso de me preocupar com o todo, ele tomará conta de si mesmo.
Nas nossas escolas é isso que se ensina: a precisa ciência da navegação, sem que os estudantes sejam levados a sonhar com as estrelas. A nau navega veloz e sem rumo. Nas universidades, essa doença assume a forma de peste epidémica: cada especialista dedica-se, com paixão e competência, a fazer pesquisas sobre o seu parafuso, a sua polia, a sua vela, o seu mastro.
Dizem que o seu dever é produzir conhecimento. Se forem bem sucedidas, as suas pesquisas serão publicadas em revistas internacionais. Quando se lhes pergunta: Para onde está o seu barco a navegar?, eles respondem: Isso não é científico. Os sonhos não são objecto de conhecimento científico...
E assim ficam os homens comuns abandonados por aqueles que, por conhecerem mares e estrelas, lhes poderiam mostrar o rumo. Não posso pensar a missão das escolas, começando com as crianças e continuando com os cientistas, como outra que não a da realização do dito do poeta: Navegar é preciso. Viver não é preciso.
É necessário ensinar os precisos saberes da navegação enquanto ciência. Mas é necessário apontar com imprecisos sinais para os destinos da navegação: a terra dos filhos dos meus filhos, no mar distante… Na verdade, a ordem verdadeira é a inversa. Primeiro, os homens sonham com navegar. Depois aprendem a ciência da navegação. É inútil ensinar a ciência da navegação a quem mora nas montanhas…
O meu sonho para a educação foi dito por Bachelard: O universo tem um destino de felicidade. O homem deve reencontrar o Paraíso. O paraíso é jardim, lugar de felicidade, prazeres e alegrias para os homens e mulheres. Mas há um pesadelo que me atormenta: o deserto. Houve um momento em que se viu, por entre as estrelas, um brilho chamado progresso. A galera navega em direcção ao progresso, a uma velocidade cada vez maior, e ninguém questiona a direcção. E é assim que as florestas são destruídas, os rios se transformam em esgotos de fezes e veneno, o ar se enche de gases, os campos se cobrem de lixo – e tudo ficou feio e triste.
Sugiro aos educadores que pensem menos nas tecnologias do ensino – psicologias e quinquilharias – e tratem de sonhar, com os seus alunos, sonhos de um Paraíso.
Rubem Alves
Gaiolas ou Asas
A arte do voo ou a busca da alegria de aprender
Porto, Edições Asa, 2004
(excertos adaptados)